29.7.04

Entrevista de Trabalho

Enquanto advogados, publicitários, entre outros, reclamam de excesso de trabalho e falta de estímulo, alguns profissionais estão bastante valorizados...

- Oi, Valdirene! Entre, por favor.
- Dá licença.
- Escutei falar muito do seu trabalho, tive boas referências e resolvi te chamar para fazer uma proposta.
- Hum...
- A pessoa que cuidava desse setor não se adaptou, tinha problemas pessoais e eu tava precisando de alguém como você aqui para gerenciar tudo.
- É um serviço difícil, né? Têm que ser feito direitinho... E eu tenho meu jeito de fazer, que tá dando certo nos lugares onde eu já trabalhei.
- Ah, sem problema quanto a isso. Você vai ter carta branca pra fazer como quiser.
- Têm outras coisas que eu também queria saber.
- Claro, pode falar.
- Quantos filhos a senhora têm?
- Er...bem... Eu tenho 4 filhos. Quatro meninos.
- Quatro!?!? E meninos?!?!
- É... mas... olha, eles são muito educados. E a gente pode, de repente, fazer um rodízio. Manda dois pra casa da minha mãe, depois manda os outros dois...
- Sei... E os produtos de limpeza que a senhora usa?
- Geralmente compro os com a marca do supermercado, mais baratos e...
- Ah, eu não trabalho assim, não. Depois a culpa da sujeira cai toda em cima da gente. Só com material de primeira.
- Tudo bem... Vai pesar um pouco no meu orçamento mas dá-se um jeito.
- A senhora recebe muita visita em casa?
- Eu? Ih... Aqui tem vezes que até telefone fica dias sem tocar.
- Certo. E quais os benefícios a senhora oferece?
- Os de sempre: vale transporte, descanso semanal e uma coisa que só tem aqui, viu! Quarto com TV a cabo.
- Eu só assisto novela. Da Globo. Mas é um plus a mais...
- Mas eu queria que você não pensasse só no dinheiro. A gente aqui é uma família. Se a gente ganha, você ganha. Precisamos de alguém com garra, deter...
- Certo, certo... A senhora faz o seguinte: liga daqui uns dias no meu celular, que eu recebi outras propostas e ainda tô analisando. Aqui meu cartão.
- OK, então... Waldyrenne. Eu te ligo.
- E por favor não comenta que tive aqui, porque eu ainda não saí do emprego onde eu tô, fica chato.
- Claro, óbvio. Não comento nada, não. Pode deixar que eu ligo. Não esqueço.
- Quatro filhos... Tá certo...

25.09.03

28.7.04

Encontra-se

Mais uma vez fui atrás de ninguém.
Se me vissem procurando ninguém, me perguntariam "Quem?"
Ninguém que me chateie, nem me deixe mais sozinho.
E ninguém que não queira me escutar ou ficar calado.
Outra noite fui buscar ninguém. E, lógico, encontrei.
Quem sabe, outro dia, alguém também me encontre.

18.09.03

27.7.04

Sopro

Tuas palavras me dobram e não me partem.
Me dão certeza de que me fazes forte, resistente.
Como há muito não me sentia,
me sinto eu novamente.

Muro

Medos calam as palavras.
Angústias bloqueiam os pensamentos.
Inseguranças abalam as construções.
Raivas esmagam a eloqüência.
Hoje a vida me impede de escrever.

15.12.03

Primeiro post do resto de nossas vidas

Aviso aos navegantes: ao contrário de 2003, quem está no controle deste ano sou eu.

05.01.04

(N.A.: essa foi a previsão mais errada que algum ser humano já ousou fazer na face da Terra.)

26.7.04

Minhas obras

A palavra é meu tijolo. E com ela construo casas, muros, canteiros. Mas não se engane quem lê agora essa pequena construção. Não sou engenheiro ou arquiteto. Sou simples pedreiro. Pouco sei sobre levantar frases. Mas observo os mestres e, aos poucos, também uso cimento, areia e brita para por de pé o meu trabalho. E não quero ser grandioso. Quero entregar pequenas casas, que sejam aconchegantes. Ou até mesmo um muro que ofereça um pouco de sombra em um dia quente. Mas se um dia erguer uma escada difícil de escalar, com alguns degraus irregulares, por favor, não dispense meus serviços. Estou somente no começo de minhas obras. Minhas obras.

(iniciado em JAN/03 em Lisboa)

17.06.03

As mensagens dos filmes

Feche os olhos e imagine a cena: depois de um longo e tedioso dia de trabalho você vai ao cinema buscando a distração, a diversão e a paz que só uma sala escura pode propiciar. O filme começa com uma cena de nudez fotografada por Walter Carvalho, o que a torna muito mais do que uma simples cena de nudez, e, de repente, seus pensamentos já totalmente imersos naquela poesia em forma de imagem são interrompidos por um grito de "DILIÇA!!!!!" Isso mesmo: "Diliça". Bem, sendo eu um cara muito otimista e como o filme estava apenas começando, quis acreditar que fosse apenas uma reação isolada, talvez causada pela mesma emoção que aquela primeira passagem me causou, com um pouco mais de "verve", para não dizer descontrole, é claro. No entanto o filme prosseguiu e os gritos também. Sem contar os mais imbecis comentários. Não, não sou um daqueles pseudo-intelectuais que gostam de fazer observações inteligentes sobre a película enquanto assistem. Quero somente o silêncio. Mas escutar "Ela está sem calcinha" pelo menos umas 10 vezes durante a projeção irritaria qualquer espectador. Rapaz calmo e controlado que sou atualmente, preferi não repetir algumas de minhas passagens cinematográficas no cinema nas quais fui protagonista de discussões woodyalleanas por causa da falta de educação. Levantei-me e troquei de lugar pois o "comentarista", além de tudo, estava apenas uma fileira atrás de mim. E toda essa história se prolongou até o fim. Coisas assim realmente podem estragar uma boa noite de cinema e só conseguia pensar, no fim da sessão, em improvisar uma forca com um rolo de filme e colocar ao redor do pescoço daquele indivíduo. Quem sabe, talvez, aproveitar a inflamabilidade da película e também atear-lhe fogo. Tudo para aplacar um pouco a minha irritação. Mas, como muitos bons filmes, essa história também tem uma reviravolta e uma mensagem no final. Aquele homem, nos seus 34, 35 anos, fazia parte de um grupo de pessoas. Pelas roupas que usavam, pareciam ser pessoas humildes, trajando seus melhores costumes, aqueles guardados para ocasiões especiais. Chegaram ali de ônibus, e não um desses com cadeiras estofadas e ar-condicionado, mas um daqueles sujos e duros que muitas pessoas são obrigadas a agüentar diariamente. Posso até estar enganado, mas para algumas daquelas pessoas, certamente, poderia ser a primeira vez em um cinema. Ou uma segunda. E logo para ver um filme como Amarelo Manga. Me veio à cabeça as primeiras vezes que freqüentei o cine Atlântida. E o quanto gritei vendo Goonies. Abri a porta do meu carro, dei a partida e saí. Um pouco mais calmo.

25.10.03

23.7.04

Mal visível

Olha lá. Sabia que ele estava olhando pra mim. Sorrisinho cínico nos lábios, me provocando. Fica parado, de longe, colocando na minha cabeça a angústia de ficar pensando no que ele está pensando, no que vai fazer depois. Raiva e medo se misturam diante daquele velho desconhecido. Que aparece do nada, quando tudo parece estar bem. E pode levar qualquer um à loucura. Desvio o olhar e ouço sua risada estridente para chamar minha atenção. Me concentro, fecho os olhos, levo as mãos aos ouvidos. Tudo para me afastar daquele que me persegue e de quem não consigo correr. Porque apesar de estar ali fora, me intimidando, está também aqui dentro, me corroendo.

5.11.03

Sonhos de uma manhã chuvosa

Abriu somente um dos olhos e conseguiu enxergar a forte chuva que caía. Tornou a fechá-lo. Lembrou da pilha de trabalho sobre sua mesa e o mal humor habitual de seu chefe. Pensou rapidamente nas poucas contas que tinha para pagar. E, depois de uma rápida matemática, encolheu-se mais ainda sob o cobertor e voltou a dormir.

10.02.2004

22.7.04

Corre, menina!

Corre, Dandara, não pára.
Corre que a câmera dispara.
Corre, Dandara, não pára.
Corre com o sorriso na cara.
Corre, Dandara, não pára.
Corre que meu coração sara.

02.05.04

(N.A.: a foto que deu origem ao poeminha pode ser encontrada na minha Lomohome no álbum "Será o Ceará?".)

O jogo

Neste jogo não tem bola. Não tem trave, nem cesta, nem alvo. Campo? Também não tem. Não tem regras, não tem uniforme, não tem equipamento de proteção. Muito menos juiz. Não dá pra ter juiz nesse jogo. Não tem platéia, torcida ou técnico. Neste jogo só tem dois times, com uma pessoa cada. Mas nunca tem perdedores. Nem ganhadores, neste jogo.

Abril/2004

Destinatário

Acabara de escrever a carta. E fora esta a parte mais simples, apesar dos complexos sentimentos ali descritos. Inexplicavelmente as palavras fluiram sem empecilhos de seu coração para o alvo papel. Só lhe faltava agora um destinatário. Alguém que lhe respondesse com as palavras que queria ler. Que lhe desse exatamente as respostas que procurava. Que pelo menos compreendesse aquele desabafo impresso na folha. Dobrou a mensagem enquanto pensava e a colocou em um envelope selado. Observou-a, silencioso, por longo instante. Até que, finalmente, se convenceu de que aquelas palavras desenganadas que escrevera não eram para outros olhos senão os seus.

10.02.2004

21.7.04

Como foram bonitos os últimos dias em Barcelona. O sol, que insistia em sair tímido semanas atrás, voltou a se mostrar fortemente pelas colinas de Tibidabo. Aquele frio que nos dava tanta preguiça de sair de casa, se transformou em uma brisa gostosa e em um clima ameno de fim de inverno. Caminhar pelo Passeio de Gracia ou pela Rambla de Catalunha voltou a ser um programa prazeroso para aquelas horas de siesta na qual tudo está fechado. E as lindas catalanas novamente foram às ruas. Elas que pareciam ter sumido nos dias anteriores, talvez por estarem enclausuradas em seus pisos aconchegantes com o calor da calefação. E reapareceram mais perfumadas, mais elegantes e mais sensuais do que nunca. Como foram bonitos os dias que antecedem minha partida de Barcelona. Em uma conjunção inigualável e maravilhosa de sons, cheiros e imagens, a cidade parecia querer, então, me dizer suas últimas palavras: tchau, babaca.

l. (a maneira de Millor)

30.01.2003

(N.A.: mensagem mandada à amigos um dia antes de deixar Barna e abandonar o "Proyecto Barcelona")

Mesmo de quatro, com a cara entre os lençóis, continuava a sentir o cheiro daquele negro que a comia. Uma mistura de suor com poeira que a nauseava. Logo ela, pensava entre os gemidos, que cuidadosamente se perfumava todos os dias antes de sair. Independente de onde fosse. E agora estava ali, impregnada com suas essências importadas, em um quarto de pensão numa esquina perdida da cidade. Entrelaçada à um peão de obras que a tratava como uma cadela, tanto no modo de falar, como na maneira que a virava na cama para continuar a fodê-la. Sim, ela, uma empresária de sucesso, exuberante, educada, estava, naquele exato momento, fodendo com o pedreiro que minutos antes trabalhava na reforma de sua casa. Entre um gozo e outro lembrava da raiva de ver aquele preto, todo sujo de cimento, lhe lançando olhares. E da raiva que sentira ao receber suas primeiras palavras grosseiras. Mais ainda: da raiva que a consumira ao ser agarrada por ele em um dia sozinhos no apartamento. Não fizera absolutamente nada em nenhuma das situações. E assim se encontrava mais uma vez sendo devorada por aquele corpanzil molhado e fedido. O que mais a aturdia, e também lhe dava prazer, era justamente o mergulhar nessa profusão de sentimentos contraditórios. Ele, sem parar de mexer seus quadris para dentro dos dela, dava mais uma vez um dos seus sorrisinhos cínicos, como se dentro de sua ignorância entendesse o que aquela mulher pensava. Ela, gritava mais uma vez "Me fode, preto filho da puta, me fode" em uma inimaginável mescla de tesão e ódio.

14.02.03

(N.A.: Publicado no Dia de San Valentin, o Dia dos Namorados do Hemisfério Norte)

20.7.04

Certidão de Nascimento

É, você vai mesmo morrer. Mas calma. Antes muita coisa vai acontecer com você. Você vai sofrer. Você vai chorar. Vai se sentir só. Muito só. E até esquecido. Você vai ficar perdido, sem saber para onde ir. Vai correr, cair e esfolar o joelho. Vai tentar escalar uma árvore. E não vai conseguir. Vai comer uma fruta estragada. Vai ficar sem fome. Você vai se decepcionar. E vai decepcionar os outros. Vai contar mentiras pequenas, médias e grandes. E vai ser enganado também. Vai amar quem não te ama. Vai ser amado por quem você não ama. Vai errar uma questão. Entrar na rua errada. Conhecer pessoas chatas. Ser demitido. Ter o carro roubado. Deixar o sorvete cair todo no chão. Perder amigos queridos. Ganhar peso. Esquecer o aniversário de alguém. É, você vai ter que passar por muitas situações difíceis. Mas, para cada tristeza, vai encontrar dez alegrias. Para cada dor, vai experimentar dez prazeres. Toda lágrima vai ser seguida de muitos sorrisos. Porque você vai morrer muitas vezes durante sua vida. E vai renascer. E isso não será exclusividade sua. Mais cedo ou mais tarde, acontece com todo mundo. Mas antes essa gente toda vai viver. Vai você também. Vai viver, vai.

Trilha de fundo:
"Let it be" versão de Nick Cave para o filme "I am Sam"

30.01.2004

(N.A.: Aproveito pra explicar aqui o motivo do título, que não ficou claro na época. A idéia era fazer um texto que viesse grampeado a todas as certidões de nascimento e fosse lido pelas mães para os filhos. Ou que eles próprios o lessem assim que soubesse como.)

Revirando o Baú

Enquanto Dona Inspiração não vem, vai ficando com umas velharias aí do antigo LLL. As datas em itálico no fim dos textos indicam a data em que foram originalmente publicados.

LLL

É minha volta. Ou não é nada. Por enquanto não sei o que é. O que será, será.